Diário da Notícias, 11.06.2021.
Tal como a ordem contra-intuitiva das palavras neste título, o politicamente correcto apresenta-se hoje antes da verdade; o que resulta na vantagem da política até mesmo sobre a verdade científica.
Isto significa, por conseguinte, que uma mentira pode ter precedência sobre a verdade. A diferença na sua manifestação em relação a séculos anteriores é que, de queimar cientistas na fogueira, se passou, nos séculos 19 e 20 a queimar “apenas” os seus livros, enquanto no século 21, quem afirme uma verdade que não se encaixe na ficção política vigente pode ser caluniado; até mesmo os cientistas podem ser desacreditados simplesmente por serem considerados “politicamente incorretos”. Mais triste ainda é que seja hoje possível condenar publicamente figuras históricas, com total ignorância e desconsideração pelos factos e contexto histórico da época em que estas viveram. Essas interpretações não históricas suscitam sempre conclusões erradas.
O problema da relação entre o politicamente correcto e a verdade é deveras complexo. Efectivamente, o politicamente correcto é uma parte inseparável da ideologia dominante - na verdade, é o seu produto essencial; de forma que quando falamos da sua relação com a verdade, falamos da relação entre a ideologia e a verdade.
Quando tal é evidenciado, tudo se torna mais claro, porque a ideologia tem um papel decisivo sobre a verdade: a ideologia dominante é protegida pelo ordenamento jurídico, principalmente através das sanções penais, administrativas e civis, assim como através de considerações dos dirigentes de partidos políticos governantes, pelos meios de comunicação social (as emissoras de TV e rádio com frequências nacionais, os jornais e publicações de maior circulação), pelo favorecimento de determinados “intelectuais”, através de “encontros científicos”, “mesas redondas”, etc. Tudo isto, no seu conjunto, forma uma opinião pública dominante, criando inevitavelmente uma auto-censura, sendo esta a forma mais eficaz e sofisticada de censura informal. Certamente que não é fácil não sucumbir a tal. Requer, não raramente, a coragem de Sócrates, por vezes até do próprio Cristo. A verdade e, consequentemente, a justiça, são alcançadas com recurso ao sacrifício dos honestos. Quanto maior o interesse ideológico (por exemplo, geopolítico), maior o sacrifício exigido. Daí a importância da restituição e reabilitação jurídica e ética nas instituições, devendo estas ser incluídas nos direitos humanos básicos.
Assim, na relação entre ideologia e verdade, fica claro que prevalece a ideologia, ou seja, o politicamente correcto e vice-versa: a verdade e a respectiva justiça não vencem. Pelo contrário, são vencidas. Em razão disso, a regra na ciência histórica é a de que a distância temporal é necessária para estabelecer a verdade histórica. Entende-se que em regimes autocráticos a distância histórica seja longa, aliás, a determinação do distanciamento temporal não pode ter inicío antes da introdução do sistema democrático. No entanto, a experiência histórica mostra que em alguns estados democráticos, especialmente quando se trata de grandes potências com pronunciados interesses geopolíticos, esse distanciamento também deveria ser muito longo, eventualmente semelhante ao que é intrínseco dos estados não democráticos.
“Nenhuma época é conveniente a quem prefere pensar por si ao invés de juntar-se ao coro de conformistas”… “Se alguém vê a realidade como ela é, não podendo deixar de descrevê-la, é considerado um assassino da ordem estabelecida”, afirmou Jean Gwenael Dutourd, a 5 de Dezembro de 1996, numa sessão aberta da Academia Francesa. Na ocasião, proferiu o seu famoso discurso “scandale de la vertu” e citou o exemplo quando o Comité Nacional Francês de Escritores, após a Segunda Guerra Mundial, impôs a proibição de ser publicada uma única linha escrita por aqueles escritores que, na sua opinião, demonstrassem certo afeição pelo regime de Vichy ou não evitassem suficientemente associar-se ao ocupante alemão, salientando, simultaneamente: “Previ a manobra de alguns escritores medíocres por forma a eliminar a concorrência de gente talentosa das livrarias, pelo menos temporariamente”. Aliás, Dutourd ficou encantado com o anel do académico Prosper Merimée, no qual estavam gravadas as palavras de Epicharm - Não se esqueça de desconfiar, que, no fundo, é uma versão concisa da sua mensagem principal: “Sê sóbrio e aprende a duvidar, pois é a espinha dorsal do espírito”. Interessantemente, Merimée gostava de escrever sobre contos, costumes e canções folclóricas sérvias.
Somente indivíduos grandiosos, então e agora, se permitem não fazer parte do coro dos conformistas. Luís de Camões viu a versão original (de 1572) do mais importante épico português, “Os Lusíadas”, ser sujeita a alterações, em 1584, após avaliação pela Inquisição, enquanto no passado século o Canto IX foi eliminado do currículo escolar. Um exemplo disto hoje é dado pelo Nobel de Literatura Peter Handtke, que teve de provar ser um escritor incomparavelmente melhor que todos os seus concorrentes para ser laureado, não obstante o coro de conformistas. O absurdo torna-se ainda maior quando aqueles que o atacaram mais ruidosamente aparentam não ter lido uma única linha sua.
Por conseguinte, o som do coro da civilização moderna transmite a impressão de ser regido por Niccolò Maquiavel. Contrastantemente, a harmonia que só podemos ouvir nos cantores individuais a solo transmite uma impressão irresistível de ter sido regida por Aristóteles ou São Tomás de Aquino.
Oliver B. Antic
Embaixador da Sérvia